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O Nordeste do Cinema Novo

    No início da década de 1960, Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos e Ruy Guerra encontraram no espaço nordestino o ambiente ideal para colocar em prática projetos cinematográficos e ideológicos. Como resultado, foram lançados os filmes Deus e o Diabo na Terra do Sol, Vidas Secas e Os Fuzis. Obras que retratam o passado do sertão nordestino com o intuito de reafirmar as origens, o subdesenvolvimento, e, assim, evocar o espírito de rebeldia das frações populares.

    De modo geral, esses são filmes que abordam um processo de tomada de consciência e desalienação como componentes fundamentais para ultrapassar o subdesenvolvimento. Com isso, os diretores cinemanovistas buscaram no Nordeste as raízes primitivas da sociedade brasileira e o inconsciente de revolta com a dominação, opressão e colonização. Trata-se, no entanto, de um recorte temático que dialoga com diferentes linguagens artísticas. A literatura é um exemplo, precisamente o Romance de 30, onde os temas da seca, do coronelismo, da migração e do fanatismo religioso assumiram um caráter central.

    Quanto a isso, é possível afirmar que, no âmbito das esferas produtoras de conhecimento, como é o caso do cinema, como bem apontado por Geralda Medeiros Nóbrega, por exemplo, é comum se realizar reflexões por meio de um olhar que transita por outros lugares e épocas. Trata-se, nesse caso, de uma visão do real sob os auspícios do imaginário. Fruto, evidentemente, de um capital cultural recebido e adquirido ao longo do tempo. Por exemplo: o Nordeste brasileiro forma um espaço, que, de modo simbólico, foi concretizado e construído através de discursos de diferentes épocas e contextos que dialogam entre si. E um exemplo disso é a própria produção cinematográfica do Cinema Novo e o seu diálogo com a literatura, a música e a pintura.

    No trecho abaixo, por exemplo, do livro A Bagaceira, de José Américo de Almeida, observa-se uma construção imagética que coaduna com o cenário e com a questão da migração presente no filme Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos, que foi adaptado da obra de Graciliano Ramos:

    “Eram os mesmos azares do êxodo. A mesma debandada (…) passavam os retirantes dessorados, ocos de fome, cabisbaixos como quem vai contando os passos”

    Além disso, em Vidas Secas, Deus e o Diabo na Terra do Sol e Os Fuzis há a miséria presente em O Quinze (Rachel de Queiroz), o coronelismo que marca São Bernardo (Graciliano Ramos) e o fanatismo religioso que faz parte da narrativa de Fogo Morto (José Lins do Rego). Tudo isso em uma compreensão em que o Nordeste aparece como um espaço arcaico, isolado do mundo, tal qual a narrativa de Lamento Sertanejo (Gilberto Gil e Dominguinhos). O trecho “eu não consigo ficar na cidade sem viver contrariado”, por exemplo, pode remeter a Fabiano de Vidas Secas.

    “Por ser de lá do sertão, lá do cerrado. Lá do interior do mato. Da caatinga do roçado. Eu quase não saio. Eu quase não tenho amigos. Eu quase que não consigo. Ficar na cidade sem viver contrariado. Por ser de lá, na certa por isso mesmo, não gosto de cama mole, não sei comer sem torresmo. Eu quase não falo. Eu quase não sei de nada. Sou como rês desgarrada. Nessa multidão boiada caminhando a esmo”

    Do mesmo modo, é possível citar Súplica Cearense, por exemplo, composta por Gordurinha e Nelinho e interpretada por Luiz Gonzaga. Nela, observa-se a questão da religião como elemento presente no âmbito do imaginário nordestino. Um aspecto que se relaciona com a narrativa de Deus e o Diabo na Terra do Sol e Os Fuzis:

    “Olha lá, vai passando a procissão, se arrastando que nem cobra pelo chão. As pessoas que nela vão passando acreditam nas coisas lá do céu. As mulheres cantando tiram versos, os homens escutando tiram o chapéu. Eles vivem penando aqui na Terra, esperando o que Jesus prometeu. E Jesus prometeu coisa melhor, pra quem vive nesse mundo sem amor, só depois de entregar o corpo ao chão, só depois de morrer neste sertão. Eu também tô do lado de Jesus, só que acho que ele se esqueceu de dizer que na Terra a gente tem de arranjar um jeitinho pra viver. Muita gente se arvora a ser Deus, e promete tanta coisa pro sertão. Que vai dar um vestido pra Maria, e promete um roçado pro João. Entra ano, sai ano e nada vem, meu sertão continua ao Deus dará. Mas se existe Jesus no firmamento, cá na Terra isso tem que se acabar”

    Ao considerar esses aspectos, é possível afirmar que o cinema, como forma de expressão artística, estabelece relação íntima com outras linguagens. A literatura e a música, nesse caso, são ótimos exemplos. No caso em específico, tendo em conta a representação do Nordeste do Cinema Novo, essa relação também alcança a pintura. Por exemplo, em Os Retirantes, de Cândido Portinari, observa-se o sofrimento dos migrantes nordestinos. Representados por meio de figuras magérrimas e com expressões que denunciam a fome. Imagem que – tal qual o Romance de 30 e as canções citadas acima, por exemplo – também se liga à trilogia cinemanovista

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