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Eu, Daniel Blake e o neoliberalismo

    Basicamente, é possível situar a virada neoliberal em um contexto após o avanço de um estado de bem-estar social. Período marcado pela elevação da qualidade de vida da classe trabalhadora e pelo advento da seguridade social. Como bem apontado por David Harvey, por exemplo, é correto afirmar que a neoliberalização se configurou, em seu princípio, como um projeto voltado para restaurar o poder da elite econômica.

    Nos Estados Unidos, por exemplo, a parcela da renda do 1% mais rico caiu cerca de 50% no auge das políticas sociais. Com a implementação das ações neoliberais, todavia, no final dos anos 1970, a concentração de riquezas nas mãos da elite econômica praticamente dobrou. Nesse mesmo contexto, o 1% mais rico do Reino Unido também dobrou sua parcela da renda nacional em 1982. Consequentemente, houve aumento da desigualdade social. Por exemplo: a diferença de renda entre os 20% da população do mundo que vive nos países mais ricos, em comparação com os mesmos 20% dos países mais pobres, era de 30:1 em 1960; já na década de 1970 esse índice saltou para 74:1 (Harvey).

    Na essência, o neoliberalismo é uma teoria político-econômica que propõe que o bem-estar social pode ser melhor sustentado liberando as liberdades e as capacidades empreendedoras individuais. E a sua origem, basicamente, remete a autores como Friedrich Von Hayek, Ludwig Von Mises e Milton Friedman. Para esses teóricos, o papel do Estado deve ser: a) criar e preservar um alicerce institucional apropriado para o desenvolvimento do mercado e b) ao mesmo tempo fortalecer as estruturas militares, de defesa, para garantir o direito da propriedade privada individual. Logo, o Estado neoliberal se caracteriza: 1) pela defesa do clima de negócios. Inclusive quando houver conflitos com os direitos sociais e/ou com a qualidade ambiental; 2) pela prática frequente de resgatar empresas ou evitar fracassos financeiros; 3) pela hostilização de toda forma de solidariedade social que imponha restrições ao acúmulo de capital; 4) pelo aumento das parceiras público-privadas; e, por fim, 5) pela diluição das fronteiras entre Estado e poder corporativo.

    Assim sendo, um traço importante desse modelo específico de sociedade é a precarização da classe trabalhadora. Exatamente o aspecto central do enredo de Eu, Daniel Blake. É importante ressaltar: a virada neoliberal ocorreu em um momento em que o papel do trabalho, na construção da riqueza social, enfraqueceu-se na medida em que se desenvolveu a financeirização e os processos de automação. Ocasionando, assim, baixos salários, crescente insegurança no emprego e perdas de benefícios e proteção. Exatamente o que retrata o universo diegético do filme de Ken Loach.

    Na obra, somos apresentados a Daniel. Um trabalhador inglês que após sofrer um infarto enfrenta uma verdadeira cruzada para garantir seus direitos. É interessante notarmos, ao menos, dois aspectos da trama: 1) a seguridade social foi terceirizada pelo Estado. Uma empresa norte-americana é quem administra a situação; 2) a solicitação do seguro se dá de modo digital. Terceirização e automação são elementos centrais da teoria neoliberal. Além disso, outro aspecto interessante é o fato de Daniel ser de Newcastle. Cidade situada no norte da Inglaterra, uma área industrial que após o advento do neoliberalismo passou a conviver com o desemprego, e, consequentemente, com a degradação econômica e social.

    Ainda assim, é importante pontuar que os efeitos do neoliberalismo são sentidos de modo distinto: ainda que o filme de Loach, assim como as pesquisas de Robert Castel e Loic Wacquant, por exemplo, apontem as políticas neoliberais como vetor de pobreza em países como França e Inglaterra, nessas nações os efeitos causados são mais amenos quando comparados com países como Brasil, México e Argentina. Isso acontece porque, nas sociedades em que as políticas de um Estado social se consolidaram e integraram uma grande parcela da sociedade, houve um compartilhamento de riquezas que permitiu que os cidadãos desenvolvessem índices de qualidade de vida bastante aceitáveis. O que não é o nosso caso.

    Países como Brasil e Argentina, por outro lado, compartilham de uma existência baseada no habitus precário enquanto fenômeno de massa (Jessé Souza). E, se, nesse caso, compreende-se a neoliberalização como um fenômeno que aprofunda as desigualdades sociais, é evidente que os seus efeitos em países subdesenvolvidos são mais devastadores. De um lado ou de outro, no entanto, a certeza é uma só: o neoliberalismo tem se configurado como um vetor de aprofundamento da miséria social. E o ótimo Eu, Daniel Blake deixa isso muito claro.

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