Texto de Daniel Corcino (IG: @pluricine)
Pelo Malo (2013)
é uma excelente “aula” sobre interseccionalidade e um convite a refletir o que
é estar/ser latino-americano, a partir da vivência de um garoto negro que mora
na periferia de Caracas (Venezuela). A síntese multíssona das questões sociais
contemporâneas trazidas nesse filme é algo raro de se encontrar de modo tão
preciso e bem executado, tratando-se, portanto, de uma obra-prima realizada
pela Mariana Rondón. Nesse texto, os títulos dos tópicos tratados revelam um
pouco do que irei discutir: 1. Ser criança não significa ter infância: a
derrota da vontade; 2. A periferia num país periférico: corpos segregados; 3. A
pele e o “pelo” do homem: teria Junior o direito de existir?; 4. Mulheres à
margem: trabalhos e afetos interrompidos; e 5. Não é minha mãe: é a pátria que
me pariu.
1. Ser
criança não significa ter infância: a derrota da vontade
Nesse filme,
todo o percurso do enredo surge exatamente numa das coisas mais dolorosas que
podemos acompanhar: a tentativa incessante de apagamento de uma criança que
busca formar uma subjetividade autônoma (seja ancorando-se ou não nos padrões
impostos). Nessa jornada, acompanhamos diversos efeitos do racismo, pobreza,
normatividade de gênero, bolivarianismo (x neoimperialismo) e do viver em periferia,
de modo que tal intersecção de circunstâncias provoca determinantes que tentam
destruir a possibilidade de um menino fazer algo “porque teve vontade”. Ele é
criança, mas não tem o direito de ter infância, pois falta lugar para seus
sonhos (os seus desejos parecem não merecer voz).
2. A periferia num país periférico: corpos segregados
Tudo isso
introduzido no tópico anterior tem como centro a falta de afetividade entre
mãe-filho, a qual surge visualmente pelos enquadramentos escolhidos durante
toda a obra. De modo exaustivo, são utilizados planos fechados e primeiros
planos, geralmente separando os protagonistas em cada plano enquanto interagem.
Isso representaria que há certa limitação, desconforto (até claustrofobia)
naquelas pessoas, a nível físico e emocional. Também é comum diminuir-se o
espaço de interação/possibilidade afetiva em tela quando se adota uma
perspectiva de fora do cômodo, em que há “molduras” com paredes desgastadas,
grades ou portas que ocupam grande espaço do que é mostrado. Por vezes, Junior
consegue estar enquadrado em conjunto com outras personagens que possuem melhor
relação com ele, mas tal aproximação não se mantém em todos os momentos (com
exceção de sua amiga), o que demonstra seu afastamento pessoal nessas relações.
Assim, o campo
de sentido se intensifica quando outras escolhas técnicas são utilizadas:
planos inteiros e planos gerais. São nesses momentos que vemos mais nitidamente
os cenários que transparecem descaso, precariedade e aprisionamento. Há um
destaque nos muitos padrões/repetições/enclausuramentos (ou grafites e
propagandas que compõem aqueles ambientes). A própria natureza só aparece como
contraste longínquo num horizonte distante, limitado numa janela ou outra. O
céu, por sua vez, só aparece nitidamente na cena da brincadeira entre mulher
(que resta ser estuprada ou morta) e homem (militar, armado), o que foi uma
referência a como o imaginário infantil é permeado naquele contexto.
Portanto, há uma
mescla bem feita que revela simultaneamente o resultado de morar naqueles
ambientes, num processo em que a cidade vira reflexo de segregação
socioespacial e reprodução de uma série de opressões sistematizadas. A cidade
em si não é vivenciada por essas pessoas, ela é apenas caminho/passagem para o
trabalho, a vida se resume ao bairro distante em que se mora, de preferências
dentro dos lares diminutos, local em que o risco de violência e estupro é
amenizada. Isto é, àquelas pessoas (negras e sem dinheiro para mediar relações
de consumo em estabelecimentos), a circulação nos espaços evoca desafios materiais
e simbólicos, que são revelados e bem explorados nas personagens do longa.
Enfim, os limites a nível ambiental e social afetam diretamente as relações
entre as pessoas que interagem nesses ambientes.
3. A pele e o
“pelo” do homem: teria Junior o direito de existir?
Falando em
limites, vamos ao cerne do filme. O sonho de Junior é se sentir mais bonito se
embranquecendo (sem cabelo “ruim”) e é possível perceber que todo o contexto
cultural em que se encontra o força a querer moldá-lo desde muito cedo a não
querer ocupar certos lugares sociais. Aqui, vale um parêntese: numa tradução
literal, “Pelo Malo” significa em português “cabelo ruim”.
Sua rejeição aos
seus traços negros vem de várias formas (da mídia, das pessoas que convive, do
“destino” que percebe ser dos jovens negros), de maneira que seu desejo fixo em
aparentar ser outro simboliza a busca pelo padrão que não pertence a um
venezuelano pobre (e tudo que pode representar esse fato). Por sua vez, a mãe
sintetiza diversas opressões, como um produto perverso de todas as limitações e
padrões que ele deveria aceitar e seguir. Em quem ele poderia encontra afeto,
suporte e carinho, sobra apenas o desprezo por ele ser quem é.
Junior possui
uma meta bem definida e simples, seu sonho é completamente palpável. Mas, ao
mesmo tempo, se sentir representado da forma que deseja parece ser algo tão
simbolicamente distante... A foto concretizaria fisicamente a identidade social
que desejaria para si: cabelo “bom”, podendo cantar, dançar e se vestir à
vontade. E há triste ironia nos lugares daqueles meninos nas fotos da loja: o
lugar da criança negra é um militar armado, com fundo de tanques venezuelanos,
já a criança branca está simplesmente sorrindo e com um fundo falso de um
ambiente tranquilo e natural. É esse segundo menino que Junior quer ser, ele
deseja ter cabelo liso e poder sorrir, não ser o menino negro destinado à
violência. Pelo menos ali, ele quer ser representado daquela forma.
Nesse sentido,
percebemos que ele é visto pela mãe como um corpo anormal, que precisa de alguma
explicação do saber médico para domesticar/compreender aquele ser em que ela
projetou todos os seus medos, preconceitos, angústias e traumas (enquanto o
bebê ainda está imune a tudo isso, quase que no outro oposto). Quando o médico
valida que “ele é normal”, ainda sim ela não aceita e busca novas explicações
para sua projeção distorcida. E, portanto, tudo que ela ache que é “feminino” é
motivo de rejeição. Ademais, ele não tem sequer o direito de olhar livremente
sua mãe ou tocá-la, ele só deve olhar para ter exemplo do que é ser um homem
(num ato totalmente violento com ela mesma e com seu filho). Além disso, ela
acha que ser agressiva com ele também seria um exemplo “masculino” que o falta.
Nessa obra,
alguns símbolos são utilizados para retratar tal relação conflituosa. E nisso a
dança e o cantar são importantes. Quando está com sua mãe, ela canta e dança
com ele somente como ironia e o faz sentir medo daquela expressão carregada de
sentimentos negativos, já com sua vó ele consegue recuperar a possibilidade de
cantar e dançar, ainda que não se trate da música que mais lhe agrade. Assim,
demarcam-se as diferenças entre quem não acha possível aquele modo de
subjetividade e quem o aceita em suas particularidades. Aliás, a mãe usa a
frase “porque tive vontade” de seu filho para realizar essa agressão encenada e
cantada, deixando ainda mais demarcado a necessidade de cercear o direito de
Junior existir livremente.
Vale ainda
ressaltar que em nenhum momento Junior tem vontade de se sentir “feminino”,
isso é totalmente uma interpretação imposta pela normatividade de gênero, o que
ele queria era poder se expressar autenticamente - sem ser diminuído por isso.
O filme demarca sua homossexualidade de forma não estereotipada com sua atração
pelo Mário, mas ele é apenas uma criança, sua atração ainda não denota sentido
sexual, mas antes uma admiração e uma vontade de espelhar-se naquele modo de
ser “homem”, que nada traz de ameaçador ou agressivo. E, com Mário, ele tem a
liberdade de olhar diretamente e espelhar algo positivo, diferente de sua mãe
com suas tentativas de exemplos de masculinidade.
4. Mulheres à
margem: trabalhos e afetos interrompidos
O filme também
explora de modo complexo e rico o lugar da mulher nessa sociedade. A Marta tem
como objetivo de vida resgatar seu trabalho de vigia, que trazia sentido
material e simbólico à sua vida. Por sua vez, a Carmen almeja poder novamente
ter um filho para cuidar e dar afeto, visto que o seu seguiu um trágico caminho
comum aos jovens negros de periferia (sem oportunidades, restou o tráfico e a
morte precoce). Tal filho também era marido e pai, ampliando então a ausência
que representa essa fatalidade.
A mãe do menino
luta por conseguir um trabalho que parece muito difícil (ela faria tudo para
recuperar seu emprego), porque um erro que teria cometido era o suficiente para
não conseguir mais reconquistar espaço numa profissão “masculina”.
Ironicamente, ela percebe que não é vista enquanto uma profissional capacitada,
mas apenas enquanto um corpo objetificado (e só dessa forma consegue voltar ao
cargo). Naquela sociedade, seu lugar de trabalho é limpando alguma casa (sem
direitos ou garantias). Um detalhe na montagem do filme é que o gozo masculino
é demonstrado enquanto algo sempre curto e pouco satisfatório à Marta, o que aumenta
a contradição de ela querer o filho ocupando esse mesmo tipo de masculinidade.
Já Carmen busca
em Junior o vazio deixado pela perda de seu filho (ela faria tudo para
recuperá-lo), como se fosse a última oportunidade de ter o afeto que teve de
ser precocemente interrompido. Assim, ela consegue cantar e dançar com ele,
costurando com suas próprias mãos uma roupa que representava à sua época de
moça um cantor bonito. Já num processo de rejeição e conflito interno, o garoto
não vê naquela roupa algo suficientemente masculino, o que o faz rejeitar a
peça e impede temporariamente seu objetivo de tirar a foto se sentindo
devidamente representado. E, destarte, ele começa a ver na vó uma ameaça de ele
se tornar de fato uma “mulherzinha”, fazendo-o recusar inclusive o amor dela.
Então, o filme traz novamente como a performance da masculinidade pode ser
frágil, uma vez que aquilo que outrora representaria um “galã” pode atualmente
soar como o inverso do que seria ser másculo (e vice-versa).
5. Não é
minha mãe: é a pátria que me pariu
Afinal, destaco
que o longa consegue trazer uma realidade própria de diversos países do sul
global, mas ainda sim traz uma crítica inteligente ao país em que se passa a
história. A cultura violenta, autoritária e machista presente na Venezuela por
vezes é personificada indiretamente no culto ao Hugo Chávez, mas também à
mescla entre religião e armamentismo. Ali, raspa-se à cabeça em solidariedade
ao presidente (com câncer na época), mata-se para tentar curar o presidente. A
Santíssima Trindade pode ser Jesus, Maria e um fuzil (enquanto Deus segura um
ícone do regime em vigor, a constituição). Nada daquilo parece atrair Junior e,
simultaneamente, ele tenta buscar em símbolos/imagens externas à sua realidade
tudo aquilo que deseja ser e não pode, puxando-o para um não-lugar, para um
conflito existencial dos papéis sociais que não pode ocupar. E o futuro não
aparenta ser muito esperançoso...
Quando Junior
raspa a cabeça para se adequar ao que sua mãe exigia dele, ele repete o mesmo gesto
daqueles que abdicam de seus cabelos em solidariedade ao amor à pátria. A cena
final é ele se negando a cantar a canção da pátria, sendo a escola a
representação o Estado. Por conseguinte, Marta é uma mistura de individualidade
e cultura, como todos nós, logo seus atos não são meras maldades individuais,
eles são reflexo de tal contexto sócio-político-econômico em que ser homem (ou
mulher) significa seguir uma série de padrões fechados e violentos. A busca por
uma identidade social mais flexível não cabe àquele menino, resta esse
não-lugar que o puxa à padronização de sua subjetividade.
Desse modo, a obra revela um triste retrato do desgaste e do sufoco presente na vida de inúmeros “corpos anormais” em situação de discriminações e opressões sociais naquele país. E, como sabemos, tal realidade não é distante do contexto existente no Brasil. Ou seja, a trama gira em torno de um retrato e, no fim, o filme em si é um retrato de toda uma sociedade. Quanto tempo demorará para vermos com mais frequência um outro retrato para crianças negras e periféricas como Junior, tanto nos países vizinhos como aqui?
Esse eu to devendo para mim em assistir.
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