Texto de Paulo Nicholas Mesquita Lobo
Já
quase no final do filme, Kevin vira para Chiron e pergunta: “quem é você,
cara”? Por trás dos músculos, da dentadura de ouro e do carro de luxo, quem
realmente é Chiron? Aliás, quem é você? Será que realmente sabemos quem somos
nós? O senso comum costuma trazer algumas definições como “somos produto do
meio em que vivemos” ou mesmo aforismos existencialistas desidratados e usados
pelos coachs como “você é o que faz com aquilo que fizeram de você”.
Mas, e aí, como realmente formamos nossa personalidade, nossa identidade? Será
que é tão simples receber dois limões e fazer uma limonada na vida?
Barry
Jenkins, o diretor dessa delicada poesia visual, consegue explicar várias das
nuances que nos afetam e que nos ajudam a construir nossa relação com nós
mesmos e com o mundo que nos rodeia. E a palavra-chave aqui é afeto – mas não
apenas a semântica que o senso comum adotou, no sentido de “sentimento amoroso”.
Somos seres, antes de tudo, afetivos, como dizia Baruch de Spinosa lá no século
XVII. E o afeto é a maneira como nos relacionamos com o mundo. Há dois tipos de
afeto, aquele que tem origem em algo externo a nós e como tal é definido como
paixão, ou seja, algo que nos afeta passivamente (por isso você padece, sofre,
isto mesmo, se apaixonar é sofrer); e outro que tem origem em nós mesmos e por
isso é ativo, ou seja, somos nós afetando o mundo. Porém, o mais legal na
teoria deste velho filósofo é que os “afetos afetam” nossa potência de agir, em
outras palavras, diminuem a potência, caso sejam passionais, ou ampliam, caso
sejam afetivos.
Voltando
para Chiron, desde pequeno ele encontra no mundo a opressão, o constrangimento,
a negação de sua potência criativa. O mundo aponta para ele e diz que ele não é
bacana! Órfão de pai, filho de uma mãe viciada em drogas e garçonete, morando
em um bairro negro da periferia de Miami, umas das cidades mais desiguais dos
EUA, Chiron se refugia do mundo e das agressões impessoais da sociedade em sua
timidez, tendo que aprender desde cedo a se virar sozinho, sem a proteção
afetiva de ninguém. E aqui que entra a ideia de afetividade que o senso comum
absorveu, já que este afeto, este “aconchego” que sentimos através de determinadas
figuras em nossas vidas é que amplia em nós a potência de agir, de criarmos
“nosso mundo” e não apenas de reagir às suas agressões. Esta afetividade que
encontramos em nossos pais e até mesmo em instituições sociais nos faz ter
confiança em nós mesmos, nos faz acreditar que somos o centro de alguma atenção
e que não somos apenas mais um – assim que construímos nosso “eu”.
Chiron,
desumanizado pelos colegas ao ser denominado apenas como “Pequeno”, encontra
esse afago pela primeira vez na proteção paternal de Juan, paradoxalmente, o
traficante do bairro. Ao ser adotado por Juan, Chiron percebe pela primeira vez
a complexidade da vida ao questioná-lo sobre sua “profissão”, conectando o
dinheiro do generoso Juan ao vício de sua mãe, cada vez mais degenerada. Mas a
questão que mais importa é que Juan faz isto para sobreviver, não há muitas
alternativas ali e ele tem na proteção daquele menino a chance de mostrar que é
um “ser afetivo” também. Algumas cenas são comoventes na construção da relação
dos dois, como quando Juan, mesmo adaptado à virilidade de seu trabalho,
consegue conversar com Chiron sobre sua possível homossexualidade ainda
criança. É a lenta construção da própria ideia de pai em Juan que o faz ser
compreensivo com aquele menino tímido que acabara de entrar em sua vida. Chiron
também afeta Juan, é uma relação construída socialmente que modifica as duas
personalidades. Para mim, é o arco do filme mais poético e bonito.
Contudo,
como Jenkins faz questão de frisar, a vida real é crua e dura. Já adolescente,
Chiron se vê ainda aconchegado na casa de Teresa, a esposa de Juan, mas já sem
a proteção paterna daquele que virou seu pai (a cena do batismo no mar também é
belíssima e simbólica, trazendo a ideia da confiança que o afeto de Juan trouxe
para o menino e como sua vida poderia ser diferente se ele tivesse tido a
chance de ter um outro lar e assim viver em outra configuração). Na escola, as
paixões de Chiron despertam com maior profundidade, desde as agressões físicas
e psicológicas de alguns colegas, que tornam o ambiente ainda mais opressivo
para o garoto, até mesmo a sexualidade desperta por Kevin (vejam que paixão
aqui tem a ver com emoção, com reações ao externo).
Um
salto no tempo vale a pena aqui, já que Kevin, persuadido a bater em Chiron, também
sofreu constrangimentos que lhe afetaram, afinal de contas, todos estamos
submetidos a um determinado ambiente que condiciona nossas ações e até mesmo
nossa maneira de sentir as coisas. Mas Chiron, mais à frente, em vez de
demonstrar mágoa de Kevin, aceita o pedido informal de desculpas do amigo, seja
por amor, seja por gratidão por ter recebido afeto deste. Contudo, já maduro,
Kevin fala pra Chiron justamente o que sentia àquela época, ele mesmo fruto das
paixões que o constrangiam e não permitiam que ele fosse aquilo que realmente
deveria ser, a dificuldade de poder desenvolver suas potencialidades e desejos
sem se importar com a opinião alheia. E como isso é difícil, não? Como falhamos
tantas vezes com aqueles que amamos porque nos preocupamos com a reação social
que algo terá. Kevin só conseguiu a maturidade depois de muito padecer, de ser
preso, mas Chiron, com um caminho parecido, não teve a mesma sorte. O que
definiu a forma como os dois reagiram às pressões? O que define como nós agimos
às pressões sociais? Cada um tem seu tempo, sua estrada, às vezes sequer
conseguindo escapar destes contextos.
Por
exemplo, Kevin não parece ter sofrido as mesmas constrições de Chiron, não é?
Um garoto negro, gay, nascido em um bairro pobre, sem pai e com uma mãe viciada,
como não se afetar com as paixões, com a raiva e o desprezo do mundo? Quando os
afetos se aproximavam dele, como o próprio Kevin, a vida dava um jeito de
afastar o carinho. Chiron, então, afetado por tudo que lhe rodeou durante toda
sua existência, desenvolveu uma personalidade narcisística, superficial e
fútil, uma “casca” viril, aquilo que “se espera” de um afro-americano
traficante de drogas, muitos músculos e exibicionismo material (quase um
rapper, que não pode demonstrar nenhuma característica “feminina”). A vida
ensina quem são os estabelecidos e quem deve ficar à margem, e isto varia de
acordo com cada grupo, com cada configuração e dentro de cada relação.
Para
ser um estabelecido, você tem que assumir determinadas características
estéticas, inclusive. Nossas identidades estão a todo momento sendo negociadas
dentro de nossos nichos, mesmo aqueles ditos mais progressistas. Nossa potência
criativa é a todo instante tolhida, diminuída, quanto mais nos fechamos em
nossas bolhas. Spinosa falava que corpo e mente não podem ser separados em suas
sensações, já que o corpo nada mais é do que uma invenção da mente. Então, se
algo me afeta, afeta meu coração e minha mente simultaneamente, não há essa de
racionalidade versus emoção. Contudo, quanto mais a gente amplia nossa
capacidade de sentir novos afetos, mais conseguiremos “trabalhar” nossos
sentimentos, e assim transformamos as paixões em afetos, a passividade e o
sofrimento em ação e afetividade, em amor, ao final.
Mas
para tal, e isto Spinosa não entendeu, temos que ter um ambiente afetuoso, uma
base amorosa que nos permita “evoluir” de maneira confiante. Se a todo momento
que você “conhece” algo novo e reage com paixão e o outro não te compreende,
você não terá capacidade para transformar aquela reação em ação, ou seja, não
vai conseguir ser afetivo com o “novo”. Não adianta, se quero que o outro mude,
tenho que agir com compreensão. Quando Chiron foi espancado e reagiu, a polícia
o prendeu, a escola o expulsou, Kevin virou as costas para ele e não sobrou
muito com que o garoto pudesse contar no presídio da Geórgia.
Chiron,
então, sublimou sua sexualidade, sua “natureza” mais doce e se transformou em
um “brutamontes” sarcástico. Se o contato com seu pai adotivo pudesse ter
continuado, a amizade com Kevin (e este não tivesse sido imaturo) ou mesmo
algum suporte da escola a fim de parar os constrangimentos sociais, Chiron
certamente seria outro ser humano. O seu único método de fuga da realidade
passou a ser enfiar a cabeça na pia cheia de gelo, anestesiando todas as suas
dores e preparando sua mente para vomitar no mundo todo o ódio que ele recebeu.
Viver não é algo fácil, em nenhuma configuração social, sendo ainda mais cruel
para aqueles que são definidos como à margem da sociedade. Construir uma personalidade
“forte” diante de tantas agressões, de tantos papéis e pressões, faz com que
fiquemos cada vez mais insensíveis a dor do outro, pois o outro também não está
ligando para nossa dor! É um ciclo vicioso. Se o homem não nasce ruim, com toda
a certeza a sociedade o corrompe, em todos os sentidos. Moonlight é um filme
para ver e sentir, pois as únicas vezes que o menino Chiron recebeu afeto foi
sob a luz do luar e é ali que ele parece ter uma nova chance. Tenhamos mais
afeto pelo mundo.
Fonte imagem: Moonlight (Berry Jenkins)
Referências:
Ética - Baruch de Spinosa (https://amzn.to/2NzV5oS)
Os estabelecidos e os outsiders - Norbert Elias (https://amzn.to/3dCnZPx)
Outsiders - Howard Becker (https://amzn.to/382282Y)
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